«O Supremo Tribunal de Justiça entende que são «lícitas» e «aceitáveis» as palmadas e estaladas dadas por uma responsável de um lar de Setúbal a crianças com deficiências mentais. Esta instância considerou ainda um castigo normal de um «bom pai de família» fechar crianças em quartos e que as estaladas e palmadas, se não forem dadas até podem configurar «negligência educacional». De acordo com o «Público», que diz ter tido acesso ao acórdão do Supremo, a responsável tinha sido indiciada por maus tratos, nomeadamente por causa das estaladas e palmadas, mas também por fechar as crianças em quartos escuros quando estas se recusavam a comer. A responsável do lar tinha sido condenada anteriormente pelo Tribunal de Setúbal com pena suspensa por apenas um caso, o de ter amarrado por duas vezes os pés e as mãos de um menino de sete anos para evitar que este saísse da cama e a acordasse. O caso começou quando o Tribunal de Setúbal deu como provado que a arguida, responsável pelo lar residencial do Centro de Reabilitação Profissional, entre 1990 e 2000, fechava frequentemente um menor de sete anos, que sofria de psicose infantil muito grave, na dispensa, com a luz apagada, para que ficasse menos activo. Este tribunal condenou a responsável do lar a 18 meses de prisão, com pena suspensa por um ano, justificando esta pena pelo facto de a arguida não ter cadastro, facto que levou o Ministério Público a recorrer desta decisão.
E é assim. Quando nem um colectivo de juízes consegue entender que é imperativo assegurar que gente assim se mantenha "menos activa", palavras para quê? Não tenho mais nada a dizer sobre o insólito que abre os noticiários de hoje na TSF. Só não vou perder a oportunidade de me atirar hoje ao tema dos castigos físicos infligidos a crianças. A notícia foi o mote e hoje não há preguiça que me adormeça os dedos e dê folga ao teclado. É mesmo importante falar.
Lá em casa, a palmada pedagógica sempre se usou. A minha mãe era fervorosa partidária do método, o meu pai menos, mas por mero comodismo, eu acho. Ora, o meu inconformismo perante a violência física contra crianças vem justamente desse tempo, porque me lembro, como se fosse agora, de alimentar sentimentos de raiva e desejo de vingança de cada vez que apanhava uma palmada, mesmo que "justa". Lembro-me de ter 4 anos e pensar: "Quando for crescida, vais ver..." ou " Só me bates porque sou pequenina..." E são estas considerações, com quase 30 anos, que fazem da "palmada" um acto impensável para mim. Hoje, já "crescida", acrescento a estes argumentos a descoberta das virtudes da PALAVRA. Aprendi ao longo da vida que há sempre uma palavra que vai direita ao coração de forma muito mais certeira e humana do que as palmadas. Por outro lado, tão eficaz como a "palavvra certa" é o nosso exemplo pacifista. Uma criança que nunca vê levantar a mão lá em casa, vai interiorizar certamente que isso não é um acto muito normal. E qual será a "palavra certa" que vai direita ao coração de um bebé de um ano, que mal fala, mas já faz birras descomunais? A de cá de casa é uma: "triste". Digo-lhe em genuina atitude de sofrimento: " A mãe está triste." E, ao vê-la desesperada a tentar destapar-me os olhos infelizes que escondi por trás das mãos, descubro cheia de orgulho uma filha capaz da piedade e compaixão. Não, não é chantagem emocional, pelo simples facto de eu estar verdadeiramente triste e de ela ter agido de forma verdadeiramente reprovável. Não há teatro nenhum nisto, nem oportunismo psicológico. Claro que há momentos em que uma criança não está sequer receptiva à "palavra mágica", os gritos e os pés pelo ar não a deixam sequer ouvir. Este é então o momento para... Uma palmada bem assente? NÃO!!! É hora para radicalizarmos a atitude pacifista, por meio da maior arma que o pacifismo conhece: o silêncio. É altura de investir tudo na transparência da nossa alma, para deixar ver através dos olhos o nosso desgosto profundo. Depois, assim que a crise passar, volto a desembainhar o trunfo da PALAVRA para lhe dizer: "Que linda fica a R. sem chorar! Linda! Linda! Linda!". Nesta altura, ela costuma exibir-me a segunda maior arma de que o pacifismo dispõe: um sorriso. E eu apresento-lhe o último naipe do jogo: um beijo. Claro que a estratégia exige uma aprendizagem eterna e um treino persistente. Se é verdade que nos podemos orgulhar de nunca lhe ter levantado a mão, também é verdade que não podemos exibir a glória de ter encontrado sempre a "palavra certa"... Muitas vezes as palavras que encontramos são as piores possíveis, ainda por cima uns largos decibéis acima do razoável... Neste contexto, podem agora avaliar o tamanho do desgosto que experimentei no dia em que ela se lembrou de me levantar a mão. Eu não acreditava no que tinha acabado de ver! Debaixo do choque ainda consegui pôr em marcha a estratégia da "palavra mágica", seguida da táctica do silêncio. Ela entendeu, escondeu a cara envergonhada, e eu ganhei tempo para racionalizar o que acontecera: pois é, mamã, o mundo dela está já muito para além destas quatro paredes e contitui uma ameaça constante ao teu reduto de paz. Enfim, vou-lhe oferecendo "palavras mágicas", já que não posso educar o mundo...
Não sei se fui suficientemente clara e persuasiva. Sob forma condensada, o que quis deixar claro foi o seguinte: nenhuma forma de violência física tem justificação, podendo ser muito contraproducente, sobretudo a longo prazo. Destaco aqui os mais adversos efeitos das "palmadinhas":
- A criança banaliza o acto de violência e assume desde cedo que esta é uma forma natural de resolver conflitos;
- A criança interioriza da pior forma possível a "Lei da Selva" - só o mais forte (crescido, alto, de mão mais pesada) se pode impor e, portanto, passa a querer crescer em função disso mesmo - o poder, um dia, vai ser seu;
- A criança deixa de ter determinados comportamentos só para não apanhar, acabando por não reconhecer a inconveniência social dos actos que levaram à "palmada";
- A criança acaba por desenvolver um perverso espírito de sacrifício quando as palmadas se tornam frequentes, convencendo-se de que determinado comportamento ilícito compensa uns açoitezinhos.
Do ponto de vista do adulto, é bom não perdermos de vista uma realidade incontornável: quando um crescido bate num pequenino, está a ser cobarde, ainda que coberto de razão e cheio de boas intenções. Ponto final. É óbvio que, numa grande parte dos casos, com uma "palmadinha" alcançamos o nosso objectivo, mas convém não esquecer que nem o mais nobre dos fins justifica o uso de todos os meios, mesmo que esses meios apresentem elevadíssimas probabilidades de eficácia à partida. O êxito das nossas atitudes não diz nada sobre a licitude das mesmas. E não nos iludamos com a ideia do "deixa lá, agora não aceitas, custa, mas um dia vais entender que foi para teu bem...". O problema é que "um dia" já vai ser tarde demais e a criança/adulto, entretanto, já entendeu tudo muito bem e aprendeu que a violência é a forma mais rápida de conseguir vergar a vontade do outro... rápida e eficaz, tão eficaz que não hesitará em usá-la sobre um filho...
Posto isto, convenhamos que não estamos a alimentar nem a revelar sentimentos muito nobres, quando batemos numa criança.
P.S. De propósito, não falei de "castigos", só de "palmadas". Esse é outro assunto, bem mais leve...