domingo, agosto 22, 2010

Há feira no feudo

Não sei qual é o espanto. Não é de hoje. O senhor mantém, há muito, portas abertas à feira. O senhor dá licença e toda a bata alva pode entrar, montar banca e chamar a si a clientela que ali alivia a bolsa e os males do corpo. Mas isto dentro de portas, porque ai do afoito que se atreva a assentar arraiais além fronteira!


Desta feita, consta que a caravana mercantil apregoou ao megafone que ia abrir tenda para lá do feudo, depois de ter passado uns dias de canhotos aos portões, à espera de guarida no lado de dentro, mas dos domínios senhoriais nem pio, não chegou sequer um “Quem devo anunciar?”. Nada. Posto isto, esticaram-se as lonas, cravaram-se as estacas e a barraca lá deu início ao serviço, do lado de fora, onde já alguém montara também estaminé discreto – coisa sem estandartes ou tabuleta à porta, nem metal cunhado em circulação, não fosse o senhor enfurecer-se com a afronta.




Quem nunca teve segundas opiniões médicas baseadas exclusivamente em relatórios laboratoriais ou de imagiologia, na ausência do utente a que diziam respeito? Ainda há quatro meses ouvi eu: “Sim, estes valores são perfeitamente compatíveis com um quadro de pneumonia grave” – isto de olhos num relatório de análises clínicas e outro de uma TAC, sem a presença do doente, porque o que me interessava era dar cumprimento à burocracia que nos obriga à chancela do Serviço Nacional de Saúde em caso de baixa médica. Ora, neste caso em concreto, que esperar do médico do Centro de Saúde senão uma segunda opinião de papel, sem passar pela observação do doente, acamado em casa por determinação de um seu colega do sector privado? Devo dizer que esta opinião do médico-secretário representou para mim um benefício incalculável, se atendermos ao facto de que a alternativa à pneumonia era o carcinoma pulmonar. Bendita segunda opinião. Levei dias de agonia infindável enquanto não me chegou aos ouvidos. É verdade que me ficou ao preço de uma taxa moderadora – dois euros e tal – mas não seria de esperar a inflação escandalosa deste valor se recorresse a um serviço privado? O que choca então a Ordem dos Médicos, desta vez? A inovação do serviço online? Que inovação? Não saberão, porventura, que esta forma de ajuda ao utente já existe há anos? Há anos que médicos, dos sectores público e privado, prestam esclarecimentos sobre situações clínicas concretas, sem no entanto fazerem diagnóstico ou qualquer referência terapêutica online. E o serviço Saúde 24, de tanta utilidade nos dias que correm, não procede à triagem de situações clínicas, exemplarmente cumprida por enfermeiros, à distância de um telefonema? Até quando vai a nossa Ordem dos Médicos relegar-se para o plano da reacção – sempre em diferido, a reboque dos acontecimentos – em lugar de passar à acção?




Que não se escandalize quem trouxe a feira ao feudo se um dia se instalarem os feudos na feira.

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