08h54 - Estaciono o carro mesmo em cima do toque da campainha, a uma hora em que já temos de desbravar caminho a muito custo pelo meio de miudagem histérica, não sei bem porquê - a manhã para eles começa sempre assim, parecem pardais despejados do ninho.
08h55 - Tenho 90 minutos para explicar o predicativo do sujeito, passando pelos verbos copulativos. Não corre mal, também não corre muito bem. Acho que entenderam, embora aos tropeções pelo meio de complementos directos e sujeitos que não tinham nada a ver com o assunto.
10h18 - Espreito o telemóvel (o relógio de pulso continua sem pilha há... uns meses, assim a descair para uns anos). "Meus amigos, está quase a tocar. Querem brincar à barquinha?". E a democracia grita: "SIIIIIIIIIM"; "NÃÃÃÃÃÃO"; "FIIIIXE"; "Ganda seca". Jogamos.
10h25 - Toca. Arrumam cadeiras e carteiras e saem aos pinotes, como presidiários em liberdade condicional, com escassos 25 minutos para gozarem a vida. Eu fico para trás com as meninas do costume a perguntarem se entregava os testes na próxima aula, como estão os resultados, se uma resposta incompleta à pergunta 3 é muito grave... Travão na conversa! Não tenho intervalo - para as 10h30 estava convocado o primeiro de sete encarregados de educação que tenho para atender neste resto de manhã.
10h30 - Desço ao pavilhão A e dou com a cabeça no mobile improvisado que lembra a campanha de recolha de sangue. OK, pode ser que os pais se atrasem e o tempo chegue para o altruísmo e solidariedade. Pelo sim, pelo não, é melhor passar pelo bar e fingir que tomo o pequeno-almoço, não vá a senhora doutora dizer depois que não estou em condições de ser generosa...
10h45 - "Dona A., se vier algum pai para mim, estou lá em cima na A1 a dar sangue. É só chamar."
10h55 - "Não, não tenho diversos parceiros sexuais. Não, não pratico sexo a troco de dinheiro. Não, não fui recentemente ao dentista. Não, não uso piercings. Não, não fiz tatuagens. Não, não fiz qualquer sessão de acupuntura..." E estendo-me na marquesa, já de braço esticado, habituada ao ritual.
11h00 - "Olha! Olha! Estás a ouvir-me? Tu, sim, tu! Anda cá. " - grito eu para fora da sala. O miúdo hesita, sem saber se deve mesmo entrar. Sabe que a uma professora obedece-se sempre, mas esta está com ar de alucinada, deitada numa marquesa, canalizando sangue para um saco... Será mesmo para acatar a ordem? Percebe que sim quando remato: "Eu estou a mandar!". Peço-lhe que vá lá abaixo perguntar à dona A. se chegou algum encarregado de educação para mim. Os pais demitem-se, é verdade, mas um ou outro acaba sempre por aparecer...
11h10 - "Então já está lá em baixo uma mãe e ninguém me diz nada?! Pede para mandar subir!"
11h12 - A mãe da S. assoma-se à porta da sala, também hesitante no passo seguinte. "Entre! Entre!" Atendo a senhora ali mesmo, em posição de defunto à beira dos últimos instantes. Enquanto trocamos impressões sobre a eventual retenção da filha no 7º ano, convido-a a dar sangue também. Aceita, de forma que a conversa prossegue com a senhora ao comprido também. Terminada a função, descemos, só para assinar um papel - o resto estava tratado.
12h30 - Era só para assinar um papel, mas a dona O. fala pelos cotovelos, tornozelos, joelhos e demais articulações. Daquele género non stop, que não dá espaço sequer à evasiva "olhe, desculpe, mas tenho uma aula agora..." Qual quê! Até que sou salva pelo alerta de que está um pai aos gritos na portaria da escola. Que tinham roubado dois CDs à filha, gravados por ele, que queria entrar para dar uma sova às duas ladras, "deslarguem-no" que não queria saber da directora de turma para nada (que por acaso sou eu). Galgo os degraus do bloco A num ápice, só para avisar a dona F. de que vou dar a aula de apoio pedagógico acrescido, mas tenho um problemazinho para resolver com um pai de maus instintos e já volto.
12h34 - A encarregada de educação que tinha atendimento marcado para as 10h50 resolve aparecer agora. "Um instante só, por favor. Tenho dois problemas para resolver e volto já, sim?"
13h30 - Despachada a audição de réus, vítima e testemunhas, o enigmático caso dos CDs roubados está sanado. Despeço-me do pai da vítima, com direito a palmadinhas nas costas e tudo. Diz o senhor, antes de passar o portão, que não entende como é que estes miúdos não são expulsos da escola, como ele, quando andava no 7º ano, e enfiou uma cadeira na cabeça de um professor... "A stora acha bem que o professor me tenha dado uma chapada? Não gostei, pois claro que não gostei!..."
13h50 - Lembram-se que tinha duas questões por resolver, não é verdade? Atiro-me à primeira: "Peço imensa desculpa pela demora, minha senhora, mas tinha um caso complicado para resolver... "
14h50 - Lembro-me agora, só agora, que fiquei sem almoço... a próxima aula começa já às 15h05. Paciência...
15h50 - Toca para a saída.
16h10 - Atravesso o portão da escola, mais de sete horas depois de o ter feito em sentido contrário, sem hora de almoço, para ir buscar a minha filha à creche. Ah! Mas isto já não tem nada a ver com o trabalho, pois... Até amanhã.
23h00 - Eu sei que é tarde, desculpem lá, mas tive de voltar ao relato... é que estão ali uns testezinhos para corrigir...