ADVERTÊNCIA PRÉVIA: Este post há-de parecer-vos uma estopada intragável... Tenham paciência, que o melhor está no fim, mas não dispensa a leitura atenta do início. Não vale batota!
Todos os anos faço das tripas coração para encantá-los com a história da nossa língua, o Português. Procuro torná-la tão encantadora e empolgante quanto o romance de Romeu e Julieta, que sempre quis viver na primeira pessoa, ainda adolescente, desde que pudesse dar um jeitinho naquele final, que me parecia revoltante de tão absurdo e triste.
Começo por fazê-los entender e acreditar que são eles próprios agentes na construção do idioma que utilizam diariamente, são eles que o fazem crescer. Isto porque a língua evolui, fundamentalmente, por duas vias: obedecendo à "Lei do Menor Esforço" e/ou à "Lei da Analogia". Quando chega então a altura de tornar claras estas duas noções, há que apresentar-lhes exemplos muito óbvios: apresento-lhes étimos latinos como ungula e crudum, que vieram a dar origem às palavras "unha" e "cru", em Português; isto para que percebam exactamente em que consiste a "Lei do Menor Esforço" - torna-se claro que houve uma simplificação das palavras, que se tornaram muito mais fáceis de pronunciar. Para os que se mantêm atrapalhados, atiro-lhes com um exemplo contemporâneo: toda a gente sabe que, hoje em dia, já quase ninguém conjuga o verbo "estar", que foi abalroado pelo verbo "'tar". Parece-me ser este um exemplo muito claro do que é a aplicação da "Lei do Menor Esforço" por parte dos falantes da nossa língua. Claro que, para todos os efeitos, o verbo "'tar" não existe, quer dizer... ainda não existe, ainda não é contemplado nos nossos dicionários, mas lá chegará o dia, tenho a certeza. E não há que fazer por isso um drama, que se danem os puristas e vão lá falar latim entre eles, se quiserem; que roam as ungulas até ao sabugo para sublimar a raiva! Quanto à "Lei da Analogia", costumo ensinar aos meus alunos que actuar por analogia é actuar por semelhança, ou à semelhança do que já se fez noutra ocasião. Mas isto só vai lá com exemplos, eu sei, e então conto-lhes a história do SIM (o nosso advérbio da boa vontade), que em latim se dizia sic. Ora, como é bom de ver, a omnipotente "Lei do Menor Esforço" tratou logo de transformar o sic em si, mais simplificado foneticamente. Até aqui, tudo bem. Mas por que diabo resolvemos pôr a dita lei a andar para trás e lhe acrescentámos mais tarde um m?! Não, senhor. O que aconteceu de facto não foi a adição de um m (som consonântico). O que aconteceu realmente foi que um i normal (dito oral) se transformou num i nasal. O i de sim sai-nos pelo nariz, não é verdade? Nós não lemos aquele m como um verdadeiro m, pois não? Ele só serve para mudar a maneira como lemos o i, certo? E por que raio o teremos feito?! A palavra já estava simplificada ao máximo, por que motivo resolvemos mudar a qualidade daquele i, que passou de oral (saído pela boca) a nasal (saído pelo nariz). É muito simples: entrou em cena a "Lei da Analogia" - resolvemos tornar a palavra si nasal, porque o seu antónimo, a palavra não, já era nasal, e, desta forma, passámos a dar "tratamento" igual às duas palavras.
Isto, explicado assim, pode levar-vos a ter imensa pena dos meus alunos de 9º ano, coitaditos, tão novinhos e massacrados com estas coisas... Mas garanto-vos que estas são sempre aulas muito animadas, em que eles tomam consciência da sua língua como um organismo vivo, sujeito a constantes mutações, das quais eles são agentes directos. E é sempre gratificante vê-los a saltar das cadeiras, atropelando a palavra do colega do lado, sem ter o cuidado de pôr o dedo no ar, só para dizerem que agora entendem a razão de ser da palavra "inda" na boca da avó, quando eles dizem "ainda"; ou da confusão que já tiveram de desfazer quando o professor de Química lhes ensina o símbolo químico do ouro, enquanto a professora de Português lhes fala na história da galinha dos ovos de oiro.
Mas a que propósito vem esta conversa? Que interesse têm as gincanas com que me confronto num dia de actividade profissional? Se calhar faria melhor guardando para mim estes entusiasmos que, provavelmente, são só meus. OK, guardo-os daqui para a frente. Este tinha de cá ficar, porque reparei ontem que a minha condição de mãe, inadvertidamente, acabou por servir de forma brilhante a minha função docente, neste capítulo da história da língua. E achei a coincidência tão interessante, que não posso deixar de a registar aqui. Ora bem, ainda a R. não tinha nascido, e nós já a tratávamos por Besnica. Acontece que, com o tempo, o termo foi sofrendo diversas modificações, passando de Besnica a Banica, de Banica a Nica e, por fim, de Nica a Nicova. Querem melhor exemplo da aplicação simultânea das duas leis de evolução da língua?! Vejamos: Besnica passou a Banica e, posteriormente, a Nica pela aplicação da "Lei do menor Esforço" (porque simplificámos as palavras); depois, Nica passou a Nicova pela aplicação da "Lei da Analogia" (porque passámos a pronunciar a palavra à semelhança do idioma russo)!
Olha-me isto! Eu com tanto trabalho a preparar uma aula na biblioteca e tinha tudo prontinho em casa!...