domingo, setembro 10, 2006

B

De birra brava.

O post está na forja há uns meses. Muito tempo, portanto. Sai por isso apurado, apuradíssimo. Já com aquele tom dourado de empadão que se come com os olhos, antes mesmo da primeira garfada. Mas este vem salgado, demais. Um verdadeiro atentado ao coração... de uma mãe. Coração, nervos, paciência, resistência física e mental – tudo posto à prova no instante de uma birra, temperada, como é de praxe, por baba, ranho, lágrimas carregadas de sal. E pronto... está estragado o empadão... por excesso de condimento. Não há como remediar o prato. Para a próxima previne-se o desaire, é a lição que fica.

E ficou. Uma birra evita-se, não se controla. Porque uma birra, por definição, é o descontrolo à solta, surdo, cego, sem rédea. A birra dela seria o equivalente ao meu “Qu’esta merda, caralho? P’a puta que te pariu!” dito aos gritos, de pescoço esticado para fora do carro, acompanhado da famosíssima obscenidade digital – se a noção de conveniência social, educação e maturidade psicológica não me travassem os ímpetos. Tão simples quanto isto. A birra não é senão uma manifestação de imaturidade perante a frustração e a contrariedade. Não estavam à espera de ver na boca e nas mãos de uma criança os impropérios com que vos choquei há pouco, não? Pois não. Numa criança de ano e meio, dois anos, não seria muito normal. Normal é gritar, chorar, espernear, dar pontapés, puxões de cabelos, murros e bofetadas, só por não conseguir o que quer. É bom não esquecer que nessa idade não é fácil entender, ou não se entende de todo, por que cargas de água não podemos ter o que queremos quando nos apetece, e por que raio é importante controlar as nossas formas de resposta à frustração – aliás, ainda que o entendêssemos, não poderíamos fazer uso desse princípio por pura imaturidade neurológica.

Claro que a “imaturidade” neurológica se resolve em três penadas (ou numa só!) recorrendo à valente palmada. Claro! Afinal, domar um pingente a cheirar a cueiros é fácil: com a palmada justa no momento acertado fazemos de qualquer peste um menino de coro. Não há nada que o açoite não resolva. É preciso é ser firme. E a estratégia está cientificamente testada e comprovada! Resulta! À lei da palmada não há nada que uma criança não acate, aliás, bem espancadinha até deixa de comer, se quisermos, imaginem!!! Esta brilhante teoria transladada para o contexto dos “crescidos” em desorientação automobilística corresponderia a uma estonteante murraça no nariz assim que me atrevesse a pôr a cabeça fora do carro e era certo que não passaria do “Qu’esta” na frase lá de cima e, provavelmente, pensaria duas vezes antes de voltar a “explodir” em semelhante situação. Se não entendesse à primeira... não havia problema nenhum – não faltaria quem, numa segunda ocasião, me assentasse nova murraça, desta vez no meio dos olhos, para aprender que há coisas que não se dizem. E eu aprendia.

E agora digam-me lá uma coisa: qual das cenas vos parece a mais chocante – a da birra ou a dos impropérios? Hmmm? Pois... Então por que diabo implicamos nós tanto com as birras?! Têm dois segundos para pensar e responder. Vá, podem começar. Já está? Muito bem. Porque, como acabam de dizer, desgastam, consomem paciência e - se formos honestos e respondermos em consciência – constrangem-nos socialmente, carimbam-nos a testa com as palavras “Frouxo” e “Incompetente”. Qualquer pai ou mãe reconhecerá que uma birra é tanto mais desgastante quanto mais audiência tiver. Não é agradável ser desautorizado em público, é? Pergunto: se tivessem a garantia de que o vosso filho só faria birras em privado (em casa, com o pai e a mãe, sem a presença sequer de um irmão) que reacção vos mereceria o festival de chutos e pontapés uns decibéis acima do ruído provocado pelos motores de um Boing em descolagem? - atenção: neste exercício partam do princípio que a casa é totalmente insonorizada! - Claro que tanto em público como em privado se veriam na necessidade e obrigação de actuar, mas qual das duas situações seria mais stressante? Este é para nós um factor de peso nas birras infantis – o constrangimento social que elas provocam. Nada a fazer. A partir do momento em que a birra deflagra, há que assumir este risco. O que não é justo é agravar a nossa reacção à birra porque nos sentimos envergonhados, vexados, inseguros. Há que actuar, sim, com firmeza, sim, mas com ponderação. Não, não falo de cor. Falo-vos eu, que já estive pendurada pelos cabelos - salvo seja! – num hipermercado, só porque entendi que não podia levá-la naqueles carrinhos horrorosos, com cesto acopulado, estrategicamente estacionados à entrada das grandes superfícies comerciais. Devo dizer que nem sequer procurei um canto mais resguardado. Ali mesmo, com uma mão só, porque a outra mantinha-a presa no colo como uma enguia, agarrei-lhe os pulsos com quanta força tinha e puxei-a contra o meu peito. Ela calou-se surpreendida e eu rapidamente aproveitei a aberta para lhe arregalar os olhos e repetir: “Não! E a R. Não volta a fazer isso!!! Ouviu bem?! A mãe está triste, triste, triste! Muito triste!” As últimas palavras já lhas disse de dedo apontado ao nariz, porque o risco de se agarrar de novo aos meus cabelos tinha passado. Continuou a chorar por um minuto, já sentada num vulgar carrinho de compras. Uma palmada assim que começou a chorar tinha resolvido a coisa, claro, mas eu assumi, conscientemente, que aquilo tinha de progredir até ao intolerável para que se tornasse muito óbvio para ela que não podia repetir-se. E não repetiu. Não repetiu porque eu não deixei morrer o assunto e lhe lembrei ao longo de todo esse dia como tinha sido triste o que ela fez. Nesse dia não ri mais, não imitei o cavalinho que desmaia, não usei o regador de praia na banheira para fingir a chuva no jardim, não fiz a coreografia das galinhas nem do sabiá, e na história dessa noite havia uma mãe triste... não vale a pena contar porquê. E não se repetiu porque a mãe aprendeu que os factores desencadeantes de uma birra são quase todos previsíveis e é sempre possível evitar a batalha ou prepararmo-nos o melhor possível para ela. Não, não “compro” a minha filha nem evito cobardemente os ditos “factores desencadeantes”. Limito-me a explicar-lhe em tom excepcionalmente baixo por que motivo as coisas têm de acontecer assim e não de outra maneira. Ela normalmente entende. Às vezes chora, de cara mais ou menos avermelhada. É natural. Eu ainda ontem fiz o mesmo quando me pediram mais de mil euros pelo conserto do carro. Também chorei. Também fiquei vermelha. Só não dei um pontapé a ninguém. Ela também não. Está, portanto, a crescer. Nunca mais houve birras que não sejam as de sono, que a fazem chorar sem saber porquê e dizer, como uma menina crescida: “qué xê ó-ó” [quero fazer ó-ó].

Para terminar, sintetizo o essencial do que aqui queria deixar no seguinte: se puder evitar uma birra, excelente, evito. Caso contrário, há que respeitá-la na medida do possível, isto é, não esquecer que a criança perdeu o controlo sobre as suas reacções (não serve de nada convencê-la de que aquilo não é bonito - o que é bom de se fazer antes ou depois da birra). No pico da crise, se não consigo fazer-me ouvir recorrendo ao efeito surpresa, é preferível deixá-la chorar. Eu não disse “virar-lhe costas e abandoná-la a chorar”, quis dizer: dar-lhe tempo para se acalmar e recompor, permitir-lhe o choro como forma de escape, mas ficar lá. Não concordo com quem defende que devemos virar-lhes as costas como forma de lhes subestimarmos a fúria. Cheguei a sentar-me à chinês ao lado da minha filha, em público, de olhos fixos nela, enquanto, de bruços, batia com os pés e os punhos cerrados no chão. Perante isto, deixou de chorar repentinamente, como se tivesse sido desligada da corrente, levantou-se como se tivesse molas nos pés, pediu-me que me levantasse também e trepou-me para o colo. Sei que a minha resposta teve duas leituras para ela: 1º a mãe leva a sério a birra, mas não se deixa impressionar; 2º a mãe leva tão a sério a birra, que fica ao pé de mim até acabar. Pela minha parte, o que queria mesmo que ela entendesse com este gesto é que compreendo a raiva que manifesta, ela tem razão de ser, mas não posso nem vou fazer-lhe a vontade porque... no fim da crise explico.

Enfim... que tudo termine com um B
, de bom senso.

19 comentários:

Rita Coelho disse...

Genial! Subscrevo e aplaudo!
Também não sou apologista da sacro-santa palmada e espero manter-me assim, nas birras bravas da Inês. ;)

Ana disse...

Adorei o empadão!

BichinhoS da Fruta disse...

Clap, clap, clap,...
Excelent!!!!

Jolie disse...

como eu a esta hora já não estou a 100%, deixo este a marinar para amanhã... boa?!

:p

Smas disse...

Hoje, mais que nunca gostaria de ser como tu, o pior é que infelizmente quem não está bem sou eu, não ele. E ainda hoje comentava tal no meu post e eu perco a paciência. A maioria das vezes sou como tu, o que desespera o papá cá de casa, mas há outras que nem eu sei explicar a mim mesma.
Bjs

Raquel disse...

Não resolvo tudo com a palmadita da ordem mas também não é sempre que consigo ter discernimento para controlar as minhas próprias emoções. O bom disto tudo é que o Gabriel lá me poupa a grandes birras em público...

anne disse...

E não há mais nada a dizer, pois já dizeste tudo.

InêsN disse...

queria tanto ter o teu jeito para a escrita...

e já agora essa sapiência...

porque aqui há palmadas na hora das birras...ou melhor...tento que o verbo passe para o pretérito imperfeito já que agora ando numa de, simplesmente, esperar que passem.

vamos a ver se consigo.

beijinho grande...obrigada por mais esta pérola :o)

a mãe dos miúdos disse...

faço exactamente isso. penso exactamente assim. e se me sento com ela no chão para vermos as duas as formigas, também me sento com ela no chão quando há choro forte de protesto, de desorientação.

S.A. disse...

Pois... depois de ler isto dá-me vontade de me ir ali atirar da varanda... posso?

;p

ddm disse...

Às vezes consigo, outras não... faz parte da minha imperfeição.

barbarayu disse...

clap, clap, clap!

com os condimentos todos, sem tirar nem pôr..


também penso assim e também hajo de forma semelhante... e espero nunca escorregar (embora o percurso da maternidade venha besuntado com manteiga até mais não - a gente lá vai tentando equilibrar-se...)

parabéns mais um avez

Anónimo disse...

Eu procedo assim mas nem sempre consigo “aquele resultado” peregrino em prol dele, falhando a disciplina. Salve-se a educação. Hehehe.
Gostei muito deste texto.
Ps. Entre algumas linhas senti-me uma mulher do norte!

CGM disse...

Gostei!

Sara CS disse...

Fazes-me rir, pensar e aprender em simultâneo. Εscreves que é um espanto! Pensas bem. Ajudas-me a tentar ser melhor mãe. Quando a Joana tiver a primeira birra brava vou lembrar-me do que li, tenho certeza.
Beijinhos.

Jolie disse...

Agora que estou a ler isto, não a melhores horas, mas com mais neurónios ligados, já posso comentar!

Não posso concordar mais! Este é o meu entendimento sobre como lidar com as birras (mais coisa menos coisa).

E nem me vou dar ao trabalho de dizer que escreves bem p'rá caramba num sotaque bem abrasileirado... porque escreves mesmo!

(eu que me arrepiu toda com certas asneirolas, aqui passaram e nem um pelo levantou :p)

barbarayu disse...

... eu escrevi "ajo" com "h"... credo!

:)

Ana Rangel disse...

Gostei (gosto!) muito de te ler mas neste... excedeste-te! Está fantástico! Subscrevo inteiramente o que a Sara escreveu, se me é permitido.

Obrigada! :)

Licas disse...

Bem, acho que vou começar a pedir mais uns desejos para mim, escrever como tu e resolver as agora poucas birras dela como tu! Fantástico, brilhante!
Parabéns.
Acho que vou guardar este texto para não me esquecer de "me sentar com ela no chão" da próxima vez...