domingo, janeiro 14, 2007

Tive muito gosto, minha Senhora.

Ontem à noite, ou já hoje - para quem acredita que à meia-noite é outro dia - li uma entrevista a Sheila Kitzinger. A mesma Kitzinger cujos livros comecei a devorar aos quinze anos - traduções de uma editora não representada nas livrarias. A mesma Kitzinger a quem devo a educação sexual que a minha mãe, não sabendo dar, soube proporcionar, quando assinou aquele cheque ao vendedor de enciclopédias que lhe bateu à porta. Ainda hoje recorro a quatro daqueles seis volumes, que se mantêm escandalosamente revolucionários, no contexto de um país teimosamente atrasado.

Ainda assim, dezasseis anos de Kitzinger não foram suficientes para evitar o parto que nunca quis. É natural - os meus olhos de adolescente curiosa escapavam-se cegos e com demasiada insistência para as páginas de cantinhos já dobrados, porque, à época, a masturbação, a contracepção e a fisiologia do acto sexual em si eram muito mais apelativos do que os capítulos respeitantes aos direitos da mulher emancipada e livre. Estava tudo lá, mas eu não vi, nem quando deixei para trás a idade do armário, porque aí estava já convencida de que a vida de casada e mãe de filhos não era para mim. Quando de um dia para o outro topei de caras com o Amor - de caras, de caras não foi bem... mas essa é outra história - quando me entreguei aos beijos de olhos, e abraços de pernas, voltei a chamar por ela, que me fez acreditar que aquela barriga grávida era mesmo minha, como mesmo meu seria o parto que estava para vir. Mas não foi. Cobardemente traí Kitzinger. Entre o 25 de Abril e o 25 de Dezembro escolhi o segundo - escolhi o natal rotineiro e sem sobressaltos. O natal que alguém tinha pronto para me impingir; o natal em série, com todos os estereótipos de lei: luzes, neve, o vermelho e o verde. Não me atrevi à revolução, essa é que é essa. Quando chegou a hora, tomaram conta de mim, mandaram calar a senhora dos livros e eu deixei. Deixei que viesse o soro - sabe-se lá com o quê diluído, mas imagino...- deixei que fizessem de mim uma asséptica púbica e uma vazia intestinal; impuseram-me a posição deitada, imóvel, não fosse o aparelho ressentir-se do transtorno; à revelia remexeram-me as entranhas; perfuraram-me as comportas que largaram uma tromba de água quente; num trabalho mecânico de talhante e costureira arrancaram-na de mim e levaram-ma. Só não conseguiram convencer-me a morrer da cintura para baixo, foi um natal sem Jingle Bells, digamos assim, sempre lhes consegui impor essa contrariedade. No vazio que ficou, voltei a ouvir Kitzinger, já tarde...

Na revista que acabou por me cair no colo, mais pela força do sono que pela da gravidade, vi as fotografias daquela Senhora, que na minha cabeça tinha a figura de uma hippie reinventada, mas é afinal uma velhinha linda, linda. À Senhora que disse, em 2004, que os partos em Portugal são tortura, à Senhora que afirma que, por cá, o parto se tornou uma questão económica, à senhora que nos grita: "Vocês precisam de uma revolução!", a esta Senhora agradeço a minha educação sexual. A ela e à S., à A.S. e à T., nos bancos do recreio, enquanto não tocava para entrar. Muito obrigada, ainda, querido P., que superas largamente todos os livros, teorias e reuniões clandestinas de adolescência. Tu que confirmas, a cada entrega diária, que a linda Senhora sabe muito bem do que está a falar.

A linda Senhora de cabelo branco, olhos de um azul-deslumbrante e pele de pêssego rosado voltou a falar comigo ontem à noite para me lembrar que ainda vou a tempo, que se é verdade que o Natal acontece quando um Homem quiser, não é menos verdade que a Revolução se fará quando a Mulher desejar.

9 comentários:

InêsN disse...

maravilhoso :) como só tu sabes escrever...

(vou comprar a revista!!)

ni disse...

fantástica, não é?
:o)

obg pelo comentário na ervilha... é bom saber que não estamos sózinhas...

bjs e abraços

S.A. disse...

Voltaste!!
E quem bem!!

Bjs (semi-desertora!)

Raquel disse...

o parto da Diana foi bem mais natural do que o do Gabriel. ainda assim tenho pena de não ter tido a coragem de a ter tido em casa.

Jolie disse...

Ainda vais muito a tempo! :)

Pedro_Nunes_no_Mundo disse...

Estive aqui e li o texto.
Deslumbrante e esmagador.

Que posso mais dizer...

Deixar só um beijo com uma pequena pedra branca em cima para não voar enquanto não chegues.

Anónimo disse...

Queria muito uns livros assim.

Gostava de dar uma boa educação sexual à minha filha. Melhor e com menos tabus do que a que eu tive.

A minha mãe não tinha muita paciência (ou tinha vergonha) para responder às minhas perguntas. Mais tarde, quando ela quis falar, já eu achava que sabia tudo e não queria conversas dessas.

Até comentei hoje na Costinhas acerca disso. Achava ridículo ouvir a minha mãe falar de certos assuntos. A forma como falava deles parecia-me demasiado infantil.
Entendo hoje que fazia o que achava melhor. Repetia o que tinha ouvido da mãe. E a minha mãe até é uma modernaça. Menos nessas coisas. :)

Concluindo, passa para cá os títulos desses livros!
:)

Sónia e MI disse...

Como adoro ler o que escreves!

Tita Dom disse...

Sem mts palavras, o teu texto esta fenomenal!
Bj