Já houve quem tivesse assistido, atónito, ao deambular da R. pelos corredores do hipermercado, sem dizer, uma única vez, "eu quero!..."
A verdade é que, desde que faço compras com ela, desde recém-nascida, NUNCA peguei fosse no que fosse para lhe dar, NUNCA lhe pus nada nas mãos do que se apresenta nas prateleiras, NUNCA lhe perguntei "Queres?" Quando muito, deixo pegar para ver, explorar, brincar até, sem esquecer que "o que aqui está é da senhora da caixa, não é nosso, só podemos ver e mexer sem estragar". Resumindo: nunca tomei a iniciativa de dar, e a ela nunca lhe passou pela cabeça ficar com o que não lhe pertence. Isto até ter noção de que tudo se pode comprar, tudo tem um preço (até as pessoas, dizem, mas a essa parte ela ainda não chegou). Acho que foi assim que se habituou a ver na ida às compras um momento de pragmático abastecimento doméstico, meramente.
Pouco antes de fazer três anos, começou a expressar desejos de natureza mais consumista, mas nunca como pedinchice. Vai dizendo: "A R. queria...", "A R. gostava...". E pode passar diante do objecto da sua ambição que não diz "Eu quero!"
E assim chegámos ao "A R. queria uma pita [pista]...". Ora, assim que o automobilístico desejo chegou aos ouvidos da avó, a pista tomou forma e esteve mais de um mês à espera, guardada no seu embrulho, enquanto não chegava o dia 26. O dia de aniversário saldou-se na módica soma de quatro prendas, um bolo do Noddy e um bolo de amêndoa e requeijão (desejo que a avó também apanhou pelo ar e não perdeu tempo nenhum a atender). Com o primeiro embrulho rasgado - a pita, pois então! - entrou numa espécie de transe, delírio, passou-se para outra dimensão, eu acho. De tal forma que não sei se acreditam, mas a prenda que os pais escolheram para ela ainda ali está, embrulhadinha, virgem na sua condição de presente de aniversário - ainda não a abriu. Eu entendo, não me melindro e até me orgulho, de certa forma - aquela não foi a prenda que ela quis, levianamente, entre o centésimo episódio do Ruca e o sexagésimo do Little People. Aquela foi a prenda que ela quis muito, muito, muito, que a manteve a sonhar acordada e pela qual soube esperar pacientemente.
Hoje, na mochila da escola, não houve como evitar o peso de dois Volkswagens, um camião tire, um furgão dos correios, uma carrinha blindada e um veículo da polícia - tudo em segredo, como devem ser mantidos os objectos do nosso desejo, cujo valor só nós entendemos.